Dois Ovos ao Fim da Tarde

Sobre o painel de Louis Dourdil existente no Café Império em Lisboa e que a TERTÚLIA PARLATÓRIO recordou na festa do 25º Aniversário iremos publicar um conto de FERNANDO NAMORA




"DOIS OVOS AO FIM DA TARDE" ____ Conto verídico sobre os dois ovos que Luís Dourdil comprava diariamente para a pintura mural no Café Império e que o seu amigo escritor Fernando Namora publicou no livro Resposta a Matilde Livraria Bertrand/1980




(...) -Boa tarde.
-Boas tardes a Vossa Excelência.
-Dois ovos como os de ontem.
-Ou como os de anteontem...
Sorriam ambos.A resvalar para uma intimidade constrangida.
E estavam naquilo.à mesma hora.E,por ser à mesma hora,o logista já o esperava à porta.
Os dois ovinhos do costume,não é verdade?
-Dois.
-A que horas fecha a charcutaria?
-Às dez, caro senhor.
-Então passarei a vir a roda das nove.
O logista passou a mão branda pelos cabelos grisalhos,que a brilhantina escurecia e domesticava.Encorajava-se a um reparo.
Vossa Excelência desculpará a impertinência : - mas porque não leva de cada vez uma dúzia de ovos,uma dúzia ou outra quantidade qualquer,evitando o incómodo de...
-Prefiro assim.
Vossa Excelência manda.
Os gestos do logista,porém,a custo dissimulavam o nervosismo,para não dizer a irritação.Aguardava o cliente à hora prevista...
-Vossa Excelência tem frigorífico?
-Tenho,mas porque me pergunta?
-È que se permite uma sugestão,poderia abastecer-se com uma quantidade razoável de ovos,visto que, no frigorífico,conservam-se muitos dias.
-Bem sei.Mas quero-os bem frescos.Dois de cada vez.
-Vossa Excelência é casado?Perdoe o atrevimento.
-Atrevimento?De modo nenhum!Sou casado,sou.Há uns bons anos.
-E janta, portanto, em casa.
-Quase sempre.
-Ah.
E não ousou ir mais longe.Em cada dia ,que entre ambos se insinuava uma convivência de ambiguidades,o logista avançava em passo miúdo na tentativa de decifrar o mistério...
-Pelo que deduzo, Vossa Excelência gosta muito de ovos.
-Nem por isso.
Era demais.Aquilo excedia o que a curiosidade e a compostura de um homem poderiam suportar.Sentia-se humilhado.Sentia-se humilhado desde o primeiro dia,para que negá-lo?Embrulhou os ovos à má cara,despediu o freguês
sem a saudação habitual.Porém num repente,foi sobre ele antes que passasse a porta,disse:
-Então os ovos são para alguém da família...
-Não são para mim.
O logista mais não pôde que abrir a boca...
-Na vez seguinte,o logista escolheu com enfatuado desvelo os dois ovos...
-Sabe Vossa Excelência que tenho prazer em vender ovos?É que, para mim são um pitéu.Omelete com salsa...
-Pois eu nem com salsa nem sem ela.
-Ah.
No dia seguinte o logista aguardava-o junto ao balcão acompanhado de uma senhora um rapazola de uns catorze anos...,o grupo que parecia posar para um retrato,fitava-o com uma avidez imbuída de censura e reserva.Quanto ao logista entre o acusador e o triunfante:"Eu não vos dizia?É este."Aproximou-se de voz melada e irónica:
-Os dois ovinhos do costume,claro está.
-Aqui tem Vossa Excelência.Bom proveito.
No dia seguinte...
-Perdoe Vossa Excelência:gostaria de confessar uma curiosidade.
-Estou a ouvi-lo
-Bom o caso é este:os ovos,os dois ovos diários. não são para o senhor comer,não são para ninguém comer,pois foi o senhor a dizê-lo;então para que servem?
-Muito simples: para pintar.
O lojista recuou,varado pela zombaria...,apontou o dedo trémulo...
-Diz Vossa Excelência que são para pintar.Tem graça.Carradas de graça.Para pintar de amarelo, bem entendido.
-De azul.Ou de violeta,vermelho,negro.-E após ter sublinhado uma pausa,falando espaçadamente e com uma deslavada
inocência:-Mas às vezes também de amarelo,de facto.
Olhando à roda,não fosse alguém reparar no diálogo,o logista retorquiu,sem já moderar o sarcasmo:
De azul , de preto, de violeta.Pintando!
-Com ovos
-O senhor, o senhor!-Estava prestes a pôr de banda todo o resguardo nas suas reações. Estava.Estava preste a esquecer,pela primeira vez na vida,que um cliente é um cliente.Mesmo sendo tonto ou lunático.Ou provocador.-Mas pintar aonde?
-Numa parede.No fundo da Alameda.Naquelas obras ao lado do Cinema.
-Ao lado do...No fundo da Alameda.
Há um tapume.è nessas obras.
-Mas isso é um café.
Vai ser Grande.O maior de Lisboa.
-A pintar.
-Com ovos,sim.O senhor pode ir lá ver.
-E vou .Quando?
-Quando quiser. Agora.Agora mesmo.
O logista ainda incrédulo disse e poderei ir depois de fechar a charcutaria?
-Claro que pode agora já sabe o sitio.
-Então lá estarei.
O homem divertido,foi saboreando a conversa ao longo da rua.Chegou à Alameda sem dar por isso.Começou a preparar a emulsão no almofariz.Aquilo servido numa travessa passaria por maionese.De um lado .a gema de ovo misturada com o óleo de linhaça;do outro o friso de latas com os pigmentos.Como estes eram uma poeira seca,aderiam ao pincel molhado na emulsão.Nada de colas.Estudara a técnica com todo o vagar.Lera alfarrábios,fizera experiências.A gema de ovo fora até ao século XVI um dos veículos das tintas.Os antigos não eram tolos.Para eles a arte começava na oficina. Interessara-lhes a gema de ovo, cuja albumina ligava perfeitamente a água ao óleo.Pintura co séculos de confirmação,resistindo às maiores usuras.Tinha de resultar.Mas quanto fizera sofrer o pobre logista!Exagerara.Sem premeditação,é certo empurrado pelas circunstâncias,pelos espantos,pelos tais laconismos.No entanto, talvez o enigma tivesse agitado a monotenia daquele viver.Batiam à porta, devia ser ele
.Disse para o ajudante:
-Vai abrir que certamente é o senhor dos ovos.
-Procuro uma pessoa que pinta aí nas obras...,sentiu-se engolido por um túnel de surpresas:andaimes,o esgazeamento
de luzes crua.Não viu logo o seu cliente,porque este sumia-se no poleiro de cavaletes.Mas de lá lhe chegou uma voz familiar:
-Trepe a essa mesa é mais fácil.
Levantou a cabeça para o alto,na direcção das lâmpadas que tinham o feitio de olhos de rã.Uma vasta parede de cal e areia, por onde progredia,uma labareda de cores,a incendiar os esboços de carvão,representando pessoas com o ar extasiado de quem aguarda um cometa no céu.céu.
Ei-los,os vermelhos,os azuis,,os amarelos.Aceitou a mão que o ajudava.O cliente vestia um fato de macaco e,na face encovada,ondeava a magia das sombras.
-Repare-dizia-lhe o pintor,numa inflexão paciente e bem humorada-,repare nesse almofariz.
E nas cascas dos ovos.É assim que se faz a mistura.Um pouco de pó vermelho e aí temos o pincel a fazer das suas.
O visitante permanece silencioso.Esforça-se por recuperar a sua personalidade de logista...
-Razão tinha Vossa Excelência.Dois ovos por dia,claro.
Não precisava de mais.Desculpe ter duvidado
.Confesso que ainda me sinto confuso.Vender ovos para alguém pintar!-Apoiou-se no estrado,fitando o cliente com serena admiração : -Tenho a honra de estar falando com...
Luís Dourdil,pintor.
-Agradecido a Vossa Excelência.O pior é que a minha mulher não vai acreditar.



- Resposta a Matilde- de Fernando Namora "DOIS OVOS AO FIM DA TARDE" conto verídico sobre Luis Dourdil

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